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Estamos aqui e a democracia que se cuide

Transformar 8 de janeiro, o dia da infâmia, em dia do patriota, dar a obras públicas o nome de expoentes da ditadura militar são formas simbólicas dos golpistas dizerem estamos aqui e voltaremos. São afrontas ao estado democrático de direito e como tal devem ser tratadas.

Sérgio Abranches , para o Headline Ideias
#DEMOCRACIA30 de ago. de 237 min de leitura
Foto do ensaio "Doma Sem Rédea: um acampamento golpista no sul", do fotógrafo Guilherme Kindermann. Foto: Guilherme Kindermann
Sérgio Abranches , para o Headline Ideias30 de ago. de 237 min de leitura

A câmara de vereadores de Porto Alegre aprovou projeto de um ex-vereador transformando o 8 de janeiro em dia do patriota na cidade. Este ato inadmissível teve sua constitucionalidade arguida ao Supremo Tribunal Federal e o relator, ministro Luis Fux, a cancelou. A lei foi, então, revogada diante do seu óbvio destino na Suprema Corte. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa transformou em lei projeto de um ex-deputado, que não conseguiu se reeleger, dando o nome do coronel Erasmo Dias a um viaduto. Erasmo Dias foi um notório agente da repressão durante a ditadura militar. O STF também foi provocado a se manifestar sobre a homenagem à ditadura contida na lei promulgada pelo governador de São Paulo. Escolhida relatora da ação direta de inconstitucionalidade, a ministra Carmen Lúcia deu ao governador Tarcísio de Freitas cinco dias para explicar por que a promulgou.

O que está por trás desses dois atos? A apologia do golpismo, da ditadura e da tortura. A celebração do golpe ficou evidente na escolha do dia 8 de janeiro. O uso do adjetivo patriota é uma cópia sem originalidade do seu uso para autodenominação excludente das pessoas da extrema direita nos Estados Unidos reunidas em grupos supremacistas e neonazistas. O adjetivo que deveria ser estendido a todos que compartilham a mesma pátria, passou a ser uma ideia excludente. Patriotas para esses extremistas são apenas eles. Os outros são comunistas, inimigos da pátria. É uma forma bélica de autodefinição política.

Nos Estados Unidos, durante o governo Trump, também houve várias iniciativas para homenagear agentes escravistas da Confederação que reuniu os estados escravocratas do Sul dos Estados Unidos e levaram o país a sangrenta guerra civil. Foram muitas as manifestações de reverência a monumentos confederados, a bandeira da Confederação derrotada foi hasteada em muitos mastros oficiais. Esses atos ainda continuam em alguns estados dominados pela extrema direita do partido Republicano.

O ato de Porto Alegre, em boa hora revogado é uma afronta ao Estado democrático de direito, ao celebrar o dia em que golpistas invadiram e depredaram a sede dos Três Poderes da República. É o dia da infâmia, do escárnio, da tentativa de golpe. Sua escolha não foi, portanto, um ato gratuito, um engano, nem mesmo uma coincidência. Foi uma ação voluntária, com o objetivo de dizer “nós continuamos aqui”. Nós quem? Os golpistas. Os que depredaram a sede dos três poderes da República em Brasília. Os que conspiravam para cancelar as eleições de 2022, nas quais Bolsonaro foi derrotado.

A ministra Carmen Lúcia não se manifestou ainda sobre a inconstitucionalidade da lei paulista. Ela  afronta evidentemente o Estado Democrático de Direito porque o coronel Erasmo Dias era uma das figuras icônicas da ditadura em São Paulo. Homenageá-lo foi a maneira simbólica de fazer a apologia da ditadura, da repressão e da tortura.

O coronel comandou, como secretário de segurança do governo de São Paulo, a invasão da PUC-SP que levou à prisão de 850 pessoas entre professores, estudantes e trabalhadores da universidade. Foi um agente ativo da repressão. Ficou conhecido também por suas intervenções grosseiras, autoritárias e abusivas na política, como deputado estadual e federal. Ele disse, em várias entrevistas, que considerava legítimo torturar em certos casos. Ora, certos casos é uma expressão genérica que cada um define como quer. Significa, logicamente, que todos os casos podem ser incluídos entre os certos casos.

O governador Tarcísio de Freitas, ao ensaiar a justificativa por ter promulgado a lei, disse à Folha de São Paulo que não cabe a ele vetar um projeto da Assembleia, a não ser que tenha alguns dos vícios que ele lista. Entre eles, mencionou o vício de inconstitucionalidade. Disse, ainda, que a análise foi “técnica” e nenhum desses vícios foi encontrado. É relevante que o governador de São Paulo não tenha constatado vício de inconstitucionalidade em uma lei que afronta o estado democrático de direito e homenageia o golpe e a ditadura militar.

Quem inaugurou homenagear figuras da ditadura foi Bolsonaro, em abril de 2016, quando, ao votar a favor do impeachment da então presidente Dilma Roussef, dedicou o voto ao torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Celebrações desse teor foram se propagando nas manifestações ao longo de todo o governo Bolsonaro. Essas atitudes coincidiram com os esforços, nos Estados Unidos, para restabelecer a reputação daqueles que defenderam o escravismo e da própria Confederação que levou à guerra civil.

Qual a ideia por trás desses comportamentos? Nos Estados Unidos, resgatar a história de movimentos racistas, segregacionistas e separatistas, em busca de recompor no presente os valores derrotados no passado. No Brasil, resgatar a ditadura, a tortura e atitudes características do período, como o racismo, o antiambientalismo e a supremacia masculina. São movimentos reacionários. Uso o termo tecnicamente, não como xingamento. O reacionário é aquele que sonha com um passado idealizado e o quer estabelecer no presente. Evidentemente esse passado nunca existiu e essa idealização configura um projeto autoritário, repressivo, discriminador e racista.

Os dois atos têm, portanto, carga simbólica muito forte. São formas de fazer a apologia do golpe, da ditadura, da repressão e da tortura. O objetivo é dar um recado dizendo que o espírito que levou Bolsonaro ao poder e o ânimo golpista do 8 de janeiro, continuam vivos e têm seus representantes.

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, fez discurso de saudação a Bolsonaro, derrotado eleitoralmente e inelegível por abuso de poder, na entrega do título de cidadão honorário que lhe foi concedido pela Assembleia legislativa de Minas Gerais. Agradecido, disse a Bolsonaro que “nos mantemos firmes com os mesmos ideal, valores e princípios que os mineiros escolheram nas urnas em 2018. Conte sempre com Minas Gerais, presidente, vocês contem  com o nosso governo”.

Curiosa escolha de palavras, que não foram improvisadas, pois o governador lia seu discurso. A referência não foi a eleição de 2022, a que prevalece, mas o pleito de 2018, o já superado. O “conte sempre com Minas Gerais” projeta no futuro uma promessa que está toda ela assentada no passado.

Bolsonaro aproveitou a ocasião para improvisar palavras repletas de autocomiseração e de teorias conspiratórias remontando ao Tratado de Tordesilhas. Começou seu “discurso” com uma piada machista sobre a a vida amorosa do governador mineiro. Falou sob os aplausos de militantes levados à galeria com as indefectíveis camisetas verde-amarelo sequestradas à seleção brasileira por ele e seus seguidores. Uma encenação que negava a derrota eleitoral sofrida por Bolsonaro e o fato de que foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral por abuso de poder.

Quando se examina todos esses atos em seu conjunto, o que seus agentes querem dizer simbolicamente é “nós estamos aqui e voltaremos”. Neste contexto, fazem sentido os atos de Porto Alegre e São Paulo, como também faz sentido o “conte sempre conosco” de Romeu Zema, A ameaça autoritária da extrema direita permanece viva. Tarcísio de Freitas e Romeu Zema buscam se qualificar como sucessores ou representantes de Bolsonaro na liderança política desses grupos extremistas.

Tarcísio de Freitas, em reunião com Romeu Zema, governador do Estado de Minas Gerais, no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, em 17 de maio de 2023. Foto: Mônica Andrade/Governo do Estado de SP
Tarcísio de Freitas, em reunião com Romeu Zema, governador do Estado de Minas Gerais, no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, em 17 de maio de 2023. Foto: Mônica Andrade/Governo do Estado de SP

Exatamente por essas demonstrações simbólicas da persistência do espírito antidemocrático da extrema-direita, é preciso perseverar na defesa da democracia e na punição aos golpistas. Nunca foi tão importante, desde a promulgação da Constituição de 1988, defender as defesas institucionais da democracia. Como vimos, as instituições podem ser neutralizadas, as agências de freios e contrapesos da democracia, como a Procuradoria Geral da República, podem ser sequestradas. Para defendê-las é necessário que esses atos não fiquem impunes. É imprescindível, também, cuidar para que aqueles que foram coniventes com os desmandos por ação ou omissão não sejam premiados com sua permanência em posições de poder.

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