#DEMOCRACIA
Estamos aqui e a democracia que se cuide
Transformar 8 de janeiro, o dia da infâmia, em dia do patriota, dar a obras públicas o nome de expoentes da ditadura militar são formas simbólicas dos golpistas dizerem estamos aqui e voltaremos. São afrontas ao estado democrático de direito e como tal devem ser tratadas.
Sérgio Abranches , para o Headline IdeiasA câmara de vereadores de Porto Alegre aprovou projeto de um ex-vereador transformando o 8 de janeiro em dia do patriota na cidade. Este ato inadmissível teve sua constitucionalidade arguida ao Supremo Tribunal Federal e o relator, ministro Luis Fux, a cancelou. A lei foi, então, revogada diante do seu óbvio destino na Suprema Corte. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa transformou em lei projeto de um ex-deputado, que não conseguiu se reeleger, dando o nome do coronel Erasmo Dias a um viaduto. Erasmo Dias foi um notório agente da repressão durante a ditadura militar. O STF também foi provocado a se manifestar sobre a homenagem à ditadura contida na lei promulgada pelo governador de São Paulo. Escolhida relatora da ação direta de inconstitucionalidade, a ministra Carmen Lúcia deu ao governador Tarcísio de Freitas cinco dias para explicar por que a promulgou.
O que está por trás desses dois atos? A apologia do golpismo, da ditadura e da tortura. A celebração do golpe ficou evidente na escolha do dia 8 de janeiro. O uso do adjetivo patriota é uma cópia sem originalidade do seu uso para autodenominação excludente das pessoas da extrema direita nos Estados Unidos reunidas em grupos supremacistas e neonazistas. O adjetivo que deveria ser estendido a todos que compartilham a mesma pátria, passou a ser uma ideia excludente. Patriotas para esses extremistas são apenas eles. Os outros são comunistas, inimigos da pátria. É uma forma bélica de autodefinição política.
Nos Estados Unidos, durante o governo Trump, também houve várias iniciativas para homenagear agentes escravistas da Confederação que reuniu os estados escravocratas do Sul dos Estados Unidos e levaram o país a sangrenta guerra civil. Foram muitas as manifestações de reverência a monumentos confederados, a bandeira da Confederação derrotada foi hasteada em muitos mastros oficiais. Esses atos ainda continuam em alguns estados dominados pela extrema direita do partido Republicano.
O ato de Porto Alegre, em boa hora revogado é uma afronta ao Estado democrático de direito, ao celebrar o dia em que golpistas invadiram e depredaram a sede dos Três Poderes da República. É o dia da infâmia, do escárnio, da tentativa de golpe. Sua escolha não foi, portanto, um ato gratuito, um engano, nem mesmo uma coincidência. Foi uma ação voluntária, com o objetivo de dizer “nós continuamos aqui”. Nós quem? Os golpistas. Os que depredaram a sede dos três poderes da República em Brasília. Os que conspiravam para cancelar as eleições de 2022, nas quais Bolsonaro foi derrotado.
A ministra Carmen Lúcia não se manifestou ainda sobre a inconstitucionalidade da lei paulista. Ela afronta evidentemente o Estado Democrático de Direito porque o coronel Erasmo Dias era uma das figuras icônicas da ditadura em São Paulo. Homenageá-lo foi a maneira simbólica de fazer a apologia da ditadura, da repressão e da tortura.
O coronel comandou, como secretário de segurança do governo de São Paulo, a invasão da PUC-SP que levou à prisão de 850 pessoas entre professores, estudantes e trabalhadores da universidade. Foi um agente ativo da repressão. Ficou conhecido também por suas intervenções grosseiras, autoritárias e abusivas na política, como deputado estadual e federal. Ele disse, em várias entrevistas, que considerava legítimo torturar em certos casos. Ora, certos casos é uma expressão genérica que cada um define como quer. Significa, logicamente, que todos os casos podem ser incluídos entre os certos casos.
O governador Tarcísio de Freitas, ao ensaiar a justificativa por ter promulgado a lei, disse à Folha de São Paulo que não cabe a ele vetar um projeto da Assembleia, a não ser que tenha alguns dos vícios que ele lista. Entre eles, mencionou o vício de inconstitucionalidade. Disse, ainda, que a análise foi “técnica” e nenhum desses vícios foi encontrado. É relevante que o governador de São Paulo não tenha constatado vício de inconstitucionalidade em uma lei que afronta o estado democrático de direito e homenageia o golpe e a ditadura militar.
Quem inaugurou homenagear figuras da ditadura foi Bolsonaro, em abril de 2016, quando, ao votar a favor do impeachment da então presidente Dilma Roussef, dedicou o voto ao torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Celebrações desse teor foram se propagando nas manifestações ao longo de todo o governo Bolsonaro. Essas atitudes coincidiram com os esforços, nos Estados Unidos, para restabelecer a reputação daqueles que defenderam o escravismo e da própria Confederação que levou à guerra civil.
Qual a ideia por trás desses comportamentos? Nos Estados Unidos, resgatar a história de movimentos racistas, segregacionistas e separatistas, em busca de recompor no presente os valores derrotados no passado. No Brasil, resgatar a ditadura, a tortura e atitudes características do período, como o racismo, o antiambientalismo e a supremacia masculina. São movimentos reacionários. Uso o termo tecnicamente, não como xingamento. O reacionário é aquele que sonha com um passado idealizado e o quer estabelecer no presente. Evidentemente esse passado nunca existiu e essa idealização configura um projeto autoritário, repressivo, discriminador e racista.
Os dois atos têm, portanto, carga simbólica muito forte. São formas de fazer a apologia do golpe, da ditadura, da repressão e da tortura. O objetivo é dar um recado dizendo que o espírito que levou Bolsonaro ao poder e o ânimo golpista do 8 de janeiro, continuam vivos e têm seus representantes.
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, fez discurso de saudação a Bolsonaro, derrotado eleitoralmente e inelegível por abuso de poder, na entrega do título de cidadão honorário que lhe foi concedido pela Assembleia legislativa de Minas Gerais. Agradecido, disse a Bolsonaro que “nos mantemos firmes com os mesmos ideal, valores e princípios que os mineiros escolheram nas urnas em 2018. Conte sempre com Minas Gerais, presidente, vocês contem com o nosso governo”.
Curiosa escolha de palavras, que não foram improvisadas, pois o governador lia seu discurso. A referência não foi a eleição de 2022, a que prevalece, mas o pleito de 2018, o já superado. O “conte sempre com Minas Gerais” projeta no futuro uma promessa que está toda ela assentada no passado.
Bolsonaro aproveitou a ocasião para improvisar palavras repletas de autocomiseração e de teorias conspiratórias remontando ao Tratado de Tordesilhas. Começou seu “discurso” com uma piada machista sobre a a vida amorosa do governador mineiro. Falou sob os aplausos de militantes levados à galeria com as indefectíveis camisetas verde-amarelo sequestradas à seleção brasileira por ele e seus seguidores. Uma encenação que negava a derrota eleitoral sofrida por Bolsonaro e o fato de que foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral por abuso de poder.
Quando se examina todos esses atos em seu conjunto, o que seus agentes querem dizer simbolicamente é “nós estamos aqui e voltaremos”. Neste contexto, fazem sentido os atos de Porto Alegre e São Paulo, como também faz sentido o “conte sempre conosco” de Romeu Zema, A ameaça autoritária da extrema direita permanece viva. Tarcísio de Freitas e Romeu Zema buscam se qualificar como sucessores ou representantes de Bolsonaro na liderança política desses grupos extremistas.
Exatamente por essas demonstrações simbólicas da persistência do espírito antidemocrático da extrema-direita, é preciso perseverar na defesa da democracia e na punição aos golpistas. Nunca foi tão importante, desde a promulgação da Constituição de 1988, defender as defesas institucionais da democracia. Como vimos, as instituições podem ser neutralizadas, as agências de freios e contrapesos da democracia, como a Procuradoria Geral da República, podem ser sequestradas. Para defendê-las é necessário que esses atos não fiquem impunes. É imprescindível, também, cuidar para que aqueles que foram coniventes com os desmandos por ação ou omissão não sejam premiados com sua permanência em posições de poder.